Home Arquivos Anunciar Download Contato

 

Editorial edição 86

Prefeitura de Santa Maria briga com Festival de Dança e quem perde é a cidade

Milton Saldanha

 Nas desavenças do Santa Maria em Dança com as autoridades municipais não há vencedores. Todos perdem. Houvesse mais habilidade política, humildade profissional e liderança, certamente tudo isso teria sido evitado.

A arrogância do poder não tem partido. Sejam de direita, de esquerda, ou meros oportunistas, aqueles que se alojam nos cargos públicos, quase invariavelmente, depois de eleitos passam a tratar os demais cidadãos como figuras de segunda classe. Foi o que vi e senti em Santa Maria (RS), onde estive neste mês para acompanhar o 8º Santa Maria em Dança, promovido pela Associação dos Amigos do Balé da Cidade de Santa Maria. A administração do PT, que ao que tudo indica é honesta e tem bons propósitos, qualidades numa sociedade que confunde obrigação com virtude, mesmo assim parece não estar conseguindo fugir desta infeliz realidade.

Com os cofres vazios, herança das más administrações passadas, de partidos conservadores, e com precatórios vencendo, entre outras contas a pagar, num montante de R$30 milhões no curto prazo e mais R$26 milhões no longo prazo, para uma receita bruta estimada de R$105 milhões para 2002, segundo dados fornecidos pelo secretário de Governo, Ivo Cassol, a Prefeitura teve que cancelar, nas vésperas do Festival, a verba de R$36 mil que havia sido prometida aos criadores e organizadores do evento, Paulo Xavier e bailarina Thaís Müller.

A Prefeitura tem toda razão. Tiveram que buscar todos os recursos possíveis, "até as moedas", como disse uma autoridade local, para honrar o pagamento do funcionalismo. Ninguém, de bom senso, concordaria em financiar arte em detrimento dos direitos dos trabalhadores municipais. Eles são, na maioria, modestas professoras de primeiro grau, garis, motoristas, escriturários. Pessoas que sustentam famílias, têm contas vencendo, e lutam como a maioria dos brasileiros. Até aí, tudo bem. Fosse eu o prefeito, teria agido da mesma forma.

Os problemas são outros. O primeiro, um ano antes, quando o prefeito Valdeci Oliveira sucumbiu à tentação dos palanques (no caso, era um palco) e prometeu coisas que não poderia cumprir, na frente de uma multidão de bailarinos, coreógrafos, técnicos e apreciadores de dança. O episódio foi gravado em vídeo, não tem como ser desmentido. Depois, as promessas se repetiram em reuniões de gabinetes, com o secretário de Cultura, Orlando Fonseca , e com o secretário de governo, Ivo Cassol. Os organizadores do Festival acreditaram nas promessas e passaram a contar com a ajuda oficial. O planejamento levou isso em conta e o resultado agora é um prejuízo estimado em 30 mil reais. O rombo seria ainda maior não fosse a ajuda voluntária de dezenas de jovens, que assumiram até trabalhos braçais, como a montagem do palco.

O festival leva a Santa Maria cerca de 4 mil bailarinos, procedentes das mais variadas cidades do país. Como a maioria é formada por menores de idade, é normal que muitas famílias também compareçam, para incentivar e aplaudir seus pupilos. São pessoas que levam prestígio e dinheiro para a cidade, pagando hotéis, restaurantes, gasolina ou táxis, compras no comércio, etc. Logo, qualquer pessoa de mediana inteligência, ainda que eventualmente não goste de dança, mas aprecie dinheiro, percebe que isso é bom para a cidade.

A Prefeitura não percebeu. Ou não quis perceber. Mesmo sem poder ceder a verba, problema que todo mundo entendeu, não ofereceu outras formas de apoio ao evento. Poderia ter ajudado, por exemplo, emprestando um ou dois veículos. Bancando (nem que fosse parcialmente) o som. Oferecendo quota de cortesia que, segundo Paulo Xavier, recebe de hotéis para hospedagem de convidados especiais. E, mais importante que tudo, poderia ter ajudado na busca de um ou mais patrocinadores, privados ou estatais, como fez para o 1º Festival Nacional de Vídeo e Mostra de Cinema (por sinal, excelente), que contou com ajuda da Corsan e do Banrisul, além do apoio de variadas formas de 37 empresas e instituições públicas.

Ao ajudar um evento, virando as costas para outro, a Prefeitura de Santa Maria cometeu um triste ato de retaliação, lamentável sob todos os aspectos, principalmente pela desagregação que provoca no meio cultural. A razão disso, em Santa Maria, todos conhecem. Paulo Xavier pensou que vivia em outro país, talvez em outro mundo, onde o livre direito ao protesto pacífico e democrático fosse uma virtude do cidadão que luta por direitos e conquistas. Ao criticar publicamente a Prefeitura, na tribuna mais democrática da cidade que é sua Câmara Municipal, com um grupo de bailarinas e bailarinos ostentando prosaicos narizes de palhaços, ele fechava todas as portas da ajuda oficial. Talvez Paulo Xavier, com seu temperamento pavio curto, ou movido pela tensão da bomba que lhe caia nas mãos, tenha sido um mau negociador. Não teve, digamos, a paciência e elegância verbal dos diplomatas. Vamos partir dessa premissa. Num ano eleitoral, irritou os plantonistas do palácio real.

O secretário de Cultura foi omisso e o prefeito perdeu a chance de mostrar grandeza, ser líder. Poderia ter dado a Paulo Xavier o troco, tivesse vocação para verdadeiro estadista, com lições de vida pública, propondo entendimentos e cooperação. Ao governante cabe a iniciativa, esgotando todos os esforços para concretizá-la. Ao contrário, entrou no jogo mesquinho da radicalização e não soube entender e exercer sua autoridade com compreensão e senso de justiça. Deveria ler sobre a vida de JK, um presidente tolerante, que deu show de humildade e dobrou com seu humanismo duros adversários nas mesas de negociações. Mas seria esperar muito. A arte da conciliação não faz parte da sua leitura de cabeceira. Nem a de boas maneiras: marcou duas vezes entrevista com este repórter, numa mesma manhã. Foram duas longas esperas, mas o prefeito saiu pela porta dos fundos, sem a delicadeza de um minuto sequer de atenção. Nem que fosse para um cumprimento rápido, apresentando outro interlocutor, como faria uma pessoa com senso diplomático e habituada com a arte das relações públicas. Ou, se é esperar muito, pelo menos por respeito e educação. O prefeito não me ofendeu. Quando estou no exercício da função jornalística nada é pessoal. Ele ofendeu a opinião pública, formada por contribuintes que pagam seu salário, e aos quais deve explicações, pois já vão longe os tempos do autoritarismo. Eu queria saber, por exemplo, por que ele coloca sob suspeita o uso da verba do Festival do ano passado, alegando que Paulo Xavier não prestou contas, e até agora não acionou sua assessoria jurídica para as medidas cabíveis? Paulo Xavier, do seu lado, passou ao jornal Dance cópia de uma prestação de contas com data de 19 de novembro de 2001 e garante que o documento foi entregue em mãos ao secretário de Finanças, Paulo Pimenta. Já o secretário de governo, Ivo Cassol, alega que o documento é nulo porque não foi protocolado. Alguém mente nessa história toda. Como se trata de dinheiro público, não importa o valor, e há honras em jogo, parece-me que compete à Câmara Municipal convocar as partes para uma acareação, de preferência com portas abertas ao público e imprensa.

Fica no ar também um aspecto intrigante: Paulo Xavier afirma que o dinheiro da verba do ano passado não passou por suas mãos. A Prefeitura teria feito diretamente todos os pagamentos. Nesse caso, a que tipo de prestação de contas se refere o prefeito? Será que a Prefeitura desconhece o que pagou e a quem? Ou, se realmente passou o dinheiro a Xavier, como foi a operação?

As autoridades municipais fazem coro em outro ponto: o Festival de Dança é uma atividade privada. Traduzindo, a Prefeitura não tem nada com isso. Se não tem, por que ajudou com verbas em anos anteriores? Por que voltou a prometer apoio? E mais: o Festival, afinal, é bom ou não para a cidade? Se for bom, por que não fazer parcerias, produtivas para a cultura e rentáveis para o comércio?

São perguntas simples, para respostas objetivas. Um prefeito de visão e sem rancores responderia na hora. Mas Valdeci Oliveira prefere sair pela porta dos fundos. 

assine nosso boletim gratuitamente
Imprima esta matéria

 

 

Produzido e  administrado pela  Page Free Design - 2003