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Editorial edição 83

Como a boa leitura pode ajudar na dança

Milton Saldanha

Bailarinos e dançarinos, em sua maioria, mostram pouco interesse pela leitura. Sem perceber, perdem muito com isso. 

"Quem não lê não sabe pensar". A frase foi da escritora gaúcha Lia Luft, em entrevista ao excelente jornalista Roberto D’Ávila, no programa Conexão, na TV Cultura. Perfeita! Em apenas seis palavras a escritora disse tudo. Como acrescentaria o Arthur da Távola, quem lê não padece de solidão. Além do imenso prazer que a boa leitura nos proporciona, ela – e só ela – nos enriquece intelectualmente, abre nossos horizontes, é instrumento de interpretação da vida, ilumina nossos caminhos. E nos ensina a falar e principalmente a escrever.

O gosto pela leitura, infelizmente, parece não alcançar vasto contingente de pessoas que integram o mundo da dança, em todos os seus segmentos, tanto populares como mais eruditos. O brasileiro, em termos gerais, lê pouco. O número de livrarias no Brasil é ridículo quando comparado com países muito menores. A maioria dos nossos municípios não tem uma única livraria. Na França, que conheço bem, qualquer cidadezinha tem duas ou três livrarias. Em Bordeaux, cidade do porte de Santo André, a concorrência no setor é fortíssima e algumas livrarias chegam a ocupar totalmente prédios de quatro andares. Não fui contar, mas sou capaz de apostar que Paris, sozinha, tem mais livrarias e sebos do que todo o Estado de São Paulo. Então seria uma grande surpresa se o pessoal de dança aqui no Brasil fosse exceção e gostasse de ler.

As conseqüências dessa lacuna são claras. Por exemplo, é tremenda a dificuldade de expressão verbal de muitos dançarinos e bailarinos que conheço. Não me refiro a falar "difícil", de forma esnobe e empolada. Aí vira humor. Refiro-me apenas à linguagem corrente, do cotidiano, que mesmo informal exige concordância, singular e plural, clareza e termos corretamente empregados. Viciados na gíria, o vocabulário de alguns se limita a meia dúzia de palavras que servem para tudo, numa pobreza que contrasta brutalmente com a riqueza e beleza da nossa língua. Quando alguém fala bem, se espantam. Alguns reagem com piadas, tentando desqualificar o interlocutor, e sem perceber se enterram mais ainda no fosso da ignorância. Na linguagem escrita, então, é um pavor. Já deixei de publicar muitos artigos neste jornal simplesmente porque não entendi o que seus autores pretendiam dizer. E olha que alguns cursaram faculdades. Era impossível adaptar o texto aos padrões da linguagem formal e jornalística. Os piores são sempre aqueles que tentam passar erudição, querem ser profundos e difíceis. Nunca abriram um dicionário e não têm qualquer intimidade com as palavras e seus reais significados, mas usam e abusam das pobres coitadas, contando com a ignorância alheia. Não sabem o que estão escrevendo, mas apostam na possibilidade de que o leitor também não saiba o que está lendo. Fica tudo muito cômico.

Outro indicador muito claro de que a maioria dos bailarinos e dançarinos pouco se interessam por livros é a magra literatura de dança, em língua portuguesa, disponível no mercado. Contam-se nos dedos os livros sobre dança, sejam técnicos, biografias ou generalidades. Não bastasse ser um mercado esquálido, diversos títulos realmente não convidam à leitura. São obras chatas, pesadas, onde transbordam frases que denunciam a vaidade exacerbada dos próprios autores, em detrimento da informação útil e de qualidade. Outras pecam pela pesquisa precária, afirmações não comprovadas, textos ruins e não revisados, verdadeiros atentados contra a gramática, a começar pelo equivocado emprego das vírgulas. Esta soma de livros, não de baixa qualidade, mas sem nenhuma qualidade, com o desinteresse do grande público pela leitura, acaba se transformando num desastre total. É triste.

Mas há livros que se salvam. Como saber se um livro é bom? Bastar ler e gostar. Se não gostar, esqueça. Leitura não é punição, é prazer. É por isso que acho absurda a leitura obrigatória na escola. O correto não é obrigar e sim estimular o aluno, oferecendo-lhe inclusive o direito à escolha do gênero e do livro. Adoro ler, mas não me imagino, por exemplo, lendo sobre astrologia. Mas quem ama astrologia deve ler tudo o que encontrar sobre o tema, tirando imenso proveito. Esta é a chave do gosto pela leitura. É tão bom que vicia.

Na Feira da Sapatilha, do Festival de Dança de Joinville, sempre há bancas de livros de dança. São as que menos vendem. A turma gasta com camisetas (nada contra, diga-se de passagem), compra até bugigangas, e não leva um livro para casa. Aí penso: se a pessoa dança, e não se interessa por livros de dança, é porque não se interessa por nenhum tipo de livro. Certamente, também não lê jornais e, quer apostar, opta por revistas de luxo e lixo, tipo "Caras", um monumento à mediocridade. Boa parte só sabe ver TV, e mal. Jamais viu um programa inteiro da excelente TV Cultura, ou dos poucos bons canais a cabo, mas perde horas irrecuperáveis prestigiando o atual nivelamento por baixo da TV brasileira. Dizer que isso é lamentável seria muito pouco.

Acredito num motivo principal para o descaso do pessoal de dança pelas estantes de livros: em grande medida isso deriva de uma ilusão -- dançar não exigiria consistência cultural. Bastaria um corpo bem cuidado e flexível, sustentado por belos feixes musculares. Esse equivoco carrega vários pecados, sendo o mais grave a separação entre corpo e mente, como se um não dependesse do outro. É verdade que uma pessoa rude e ignorante pode dançar, mas sua expressão corporal e facial estará sempre denunciando suas raízes e condição cultural. Até bichos de circo, submetidos a permanente e criminosa tortura, podem dançar, num ato mecânico. Um artista não. Este precisa de profunda concentração, espírito crítico, informação e sensibilidade humanista. É o ferramental da criatividade, sem a qual ninguém faz jus ao título de artista, hoje tão corrompido e desvirtuado pelos blefes da TV. Sem base cultural, que pode ser modesta mas não elementar, nenhum suposto artista terá fôlego para ir muito longe. A boa leitura é o alimento do espírito, a oxigenação do cérebro, a porta para a inventividade, a criação. Quem despreza o hábito de ler nem imagina o que perde. 

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