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Editorial edição 99
A grande festa da dança de salão
Em 2004 o jornal Dance completará 10 anos de circulação. Tenho 58 anos e danço desde os 14, tendo vivido grande parte da minha vida no Rio Grande do Sul, onde nasci. Em São Paulo, freqüento as pistas de dança de salão desde 1969, portanto há 34 anos. Fui freqüentador semanal das grandes gafieiras paulistas, como Som de Cristal e Paulistano da Glória, entre muitos outros memoráveis lugares onde se dançava a dois. No Rio, gastei sapatos na célebre Estudantina Musical. E fui aluno da academia Art & Som, da Francis, quando praticamente só existiam ela, em Pinheiros, e a Escola Madame Poças Leitão, em Santo Amaro. Foi lá, inclusive, que tive a idéia de criar este jornal, o primeiro no Brasil especializado em dança de salão. Isso tudo, somado, parece-me suficiente para que me apresente como “testemunha ocular da História”, como se dizia antigamente. E me confere autoridade para afirmar que a dança de salão brasileira está vivendo sua melhor fase. Uma crise aqui, uma dificuldade ali, não são consideráveis. Refiro-me ao vasto conjunto do nosso meio. São Paulo, especialmente, hoje lidera a dança de salão em todos os sentidos, e não é sem motivo que todo dia surgem por aqui (bem vindos, diga-se logo) dançarinos e bailarinos dos mais diferentes pontos do país, na busca justa de um porto seguro onde possam ser felizes e bem sucedidos. A aceitação dessas pessoas é imensa, generosa e exemplar. Eles próprios que o digam. Os nomes seriam muitos, mas vou exemplificar com um dos mais conhecidos e simpáticos, Márcio Sorriso, vindo do Rio. Se voltar ao passado recente, e ficando só nos expoentes, Celso Vieira e Jaime Arôxa. Alguns jamais viriam, como Carlinhos de Jesus, que é a cara do Rio, cidadão da cidade, mangueirense até os ossos, carioca de sotaque e coração indivisível. Alguns outros estiveram por aqui tateando o terreno, não se adaptaram à cidade, ou a cidade não se adaptou a eles, retornaram aos seus pontos de origem, mas volta e meia reaparecem, não raro com muito brilho, encantando nossos olhos. João Carlos Ramos, do Rio, é um deles. Onde coloca sua assinatura nasce ouro em pó. Não vou falar do seu ácido temperamento, que todos conhecem. Vou falar do artista extraordinário, um dos membros do reduzido clube dos autênticos coreógrafos. Porque uma coisa é ser coreógrafo, outra é pensar que é. E também do dançarino, do passista, do mestre que esbanja ginga natural e técnica adquirida. João Carlos Ramos é um orgulho para nossa dança, sobretudo na Europa, onde costuma trabalhar. Se tivesse nas relações humanas o mesmo jogo de cintura que tem no palco, e uma assessoria de imprensa e marketing competente, com certeza estaria num topo ainda mais alto, e merecido. Sua direção geral do espetáculo de final de ano do Espaço de Dança Andrei Udiloff foi um show de competência. Ele tem timing, domínio espacial do palco, criatividade. E quando entrou um vídeo, dando a impressão que a coisa iria descambar em amadorismo piegas, ele nos surpreende e deslumbra, com Andrei e Cristiane Udiloff, no palco, dançando com o mesmo figurino e em harmonia com a cena que mostra o próprio casal na imensa tela. O efeito não é inédito, Hollywood já usou várias vezes, como no filme “A Rosa Púrpura do Cairo”. Na dança contemporânea também estão fazendo muita mescla com vídeo, simultânea ou pré-gravada. Mas isso nada desmerece e em nada prejudica a beleza e emoção da cena, pelo contrário, mostra que a dança de salão também está inserida na tecnologia audiovisual. O espetáculo acabou e a gente queria mais. Tivemos. Numa tacada de mestre que é, João Carlos transformou o palco em pista de baile. O público subiu e fez também a sua parte, com platéia e tudo. Sensacional. Tempos atrás, no campo dos espetáculos, só havia duas fortes referências paulistas na dança de salão, o Centro de Dança Jaime Arôxa e a Escola de Dança Celso Vieira. Por coincidência, ambas de raiz carioca e semente de Arôxa. Além, claro, de alguns casais independentes, no samba, forró e tango. Antes da fase das grandes escolas, já pontificavam nomes como Walter Manna, Vitor Costa, Darcio Barzan, Celino Fernandes, César Guiselini, Adriana Galvão, Adriana Locilento, Carla Salvagni, Chico Peltier, entre outros, como a célebre Madame Poças Leitão e o respeitadíssimo JC Viola. A seguir, despontariam Ricardo Liendo, Karininha, Marcello Palladino, Adriana Cavalheiro, Lucimara Lima, Francisco Ramos, Cecília Terra, Jô Passos, Mileyde, Theo e Mônica, Neto, Wolney Macena, Margareth Kardosh, Itamara Tripoli e toda uma nova geração de dançarinos empurrada pela inovação e variedade de estilos da enxurrada de academias que se espalhou por todo o Estado, principalmente em São Paulo e ABC. Dessa safra são Maurício Butenas, Moskito, Amanda Baldo, Evandro Paz, Alexandrinho Bellarosa, Evandro Machado, Alberto Serrano, Renato Assis, Marquinho Kina, Bond, Ivan Silva, Alexandre Marino, Kátia Mingorance Vieira, Edson Coelho,Luís Moreno, Danielle Areco, Fabio Bonini, Elaine e Alex e tantos outros. Hoje, a hegemonia Jaime-Celso, na dança-espetáculo de grupo, com grandes criações do próprio Celso, Maísa Felix, Marcello Cunha, Karina Sabah, abriu espaço a um saudável e desejável nivelamento por cima. Não são mais os únicos, cresceu a oferta de boa qualidade. Além do já citado trabalho do Espaço Andrei Udiloff, há o exemplo do grupo de Sara Fernandes, no ABC, tendo como estrela um dançarino da maior qualidade, Vagner Ferreira. Confesso que não tinha ainda percebido com maior (e justa) atenção a versatilidade, elegância, maturidade e capacidade de interpretação deste jovem formado por Sara. Vê-lo no palco foi como acender uma luz. Em parceria com Sara, não podem ser esquecidas pessoas formadas por Celso Gazú. Nem os dançarinos do Corpo em Cena, com rapazes e moças que exibem e agregam invulgar talento ao mais puro prazer de dançar, como Ivan Luiz da Silva, Emílio Ohnuma, Ataliba, sob a direção de Luis Ferron. Entre os especializados, no caso em salsa, a Cia Conexión Caribe e a Cia Terra alcançaram padrões para competição internacional. Enquanto isso, os promissores meninos e meninas da professora Sandra, da Academia Projeto Arte e Movimento, do ABC, moldam suas asas para vôos futuros. Em outras vertentes, Stella Aguiar, Carla Salvagni, Solange Gueiros (Passos & Compassos), Mara Santos, Glória Ibarra, Academia Aerodance, Marcello Palladino, Emílio Ohnuma (Dançart), Renato Mota, Cleusa e Flávio (Studio Forma e Movimento), Fernando Di Mathus, Luiz Domingues (Dançare), Studio La Luna, Domingos e Nanci (Escola Baile), Paulo (Academia Dança e Movimento), Ailed Costa (SpaçoArt), entre outros, também colocam a dança de salão nos palcos, ou no centro das pistas, com espetáculos diferenciados e propostas saudáveis, onde a tônica é a participação de todos os alunos, mesmo iniciantes. Ou seja, vivemos todos a grande festa da dança de salão. Em que todos, em algum instante, têm direito à fantasia da ribalta, ser estrela, viver momentos de glória. Quando não é arte profissional, é diversão, coisa inocente e que a ninguém prejudica, só faz bem. É uma festa alegre e pura, que não admite racismo, preconceito, violência, tumulto, falta de ética. Por isso vale a pena. O crescimento da dança de salão tem sido extraordinário. Quando este pioneiro jornal começou, em julho de 1994, estava ainda tudo muito disperso, sem informações e referências. Dance aglutinou o meio e de certa forma até organizou, abrindo democrático espaço a todos, sempre pregando ética e educação nas pistas. Tirou do anonimato pessoas talentosas. Assumiu bandeiras. Virou referência. E gerou filhotes. Hoje, já podemos dizer que temos uma imprensa de dança, embora pequena, e isso não pode ser desconsiderado. Se é verdade que São Paulo e ABC perderam belos espaços dançantes (até hoje lamento o fechamento do Garitão, Som de Cristal, Paulistano da Glória, Saint Paul, Moinho São Jorge e outros), em contrapartida ganhou e consolidou outros tantos, sem similares em outras cidades, como Avenida Club, Zais, Carioca Club, Ópera São Paulo, Casa do Sargento, Clube Vila Maria, Carinhoso, CA Ypiranga, Icaraí, Casa de Portugal, Buena Vista Club, Dançaria Passos & Compassos, Neanderthal, Prime Club, Memphis, Casa do Minho, Cartola Club, Clube Independência, Silva Telles, Acascs, Aquático do Bosque, Juventus, União Fraterna, Café Piu Piu, e aí a lista não pára mais, incluindo também uma centena de bares, restaurantes e pizzarias dançantes dos mais variados portes e nos mais diversos bairros, fora os pequenos, médios e grandes clubes que pelo menos uma vez por mês oferecem bailes em seus salões, ou locam para terceiros. Só para dar rápidos exemplos, tem forró lascado em abundância, com trios típicos, em dois grandes restaurantes da cidade, todas as semanas, o Andrade e o Nordestino. No Demarchi, ABC, também semanalmente rolam alegres jantares dançantes com música ao vivo, no São Francisco, Pára Pedro, Florestal, todos com preços bem acessíveis. As academias se multiplicaram e também novas opções de locais para dançar. A lista de conjuntos, teclados, bandas e orquestras é enorme. Mais os DJs. Só com grandes bandas, sem contar o resto, a Grande São Paulo registra mais de vinte bailes por semana. O tango cresceu, ganhou características de comunidade, tem até uma Confraria, mais o Dance Club, de Virgínia Holl e João Braga, com práticas. Temos escolas de tango altamente especializadas, restaurantes típicos e milongas semanais. A participação de argentinos e uruguaios, com grupos musicais e academias de tango, tem fortalecido ainda mais o movimento. Personalidades como Carolina Udoviko, a Carol, e Omar Forte, que adotaram São Paulo como segunda terra, são referências no tango e trazem contribuição inestimável, ensinando e promovendo espetáculos. Muitos outros, brasileiros e estrangeiros, são fomentadores incansáveis, valendo destacar o escritor e poeta Ivan Serra. A salsa já tem até Congresso Mundial, com amplo sucesso. Leia o artigo de Ricardo Garcia e Douglas Mohmari nesta edição. Há vários espaços do zouk, sob a liderança de talentos como Philip Miha, Carlos Rocha, Heloísa Amar. Variadas opções para jantares dançantes, regulares e periódicos, com todos os ritmos, alguns sob o comando de Eliane e Dulce, ou de Cidameyer. O country costuma reunir multidões, de jeans e chapéu, em pelo menos duas mega casas, na Água Branca e São Bernardo. O forró, mais concentrado em Pinheiros, tem redutos lotados. A dança gaúcha, quem diria, lota salões em São Paulo e no Embu das Artes. Há bailes nos bairros para todas as idades, muitos no meio da tarde, em dias de semana. A colônia japonesa se esbalda na Liberdade, principalmente com ballroom dance, em academias e bailes próprios, com decoração típica. Os nomes fortes são Bill Kishikawa, Márcia Fujii e Marquinho Kina. Se somar tudo, até escolas de samba, a Região Metropolitana não tem menos de 200 lugares para dançar. Pode ser até mais. Pelo menos três navios divulgam nesta temporada cruzeiros dançantes, entre eles nosso Costa Tropicale, com o Dançando a Bordo, cujo sucesso já está garantido. Fora o que esqueci, involuntariamente... Desculpem, por favor. E olha que não sobrou espaço para falar das outras cidades brasileiras, nem de eventos, festivais e outras modalidades. Onde, no mundo, tem tanta diversidade? E se isto tudo não é um grande momento, crescimento e evolução, é o que? Concluindo: temos que assumir com satisfação e orgulho que em termos de dança somos uma potência, que dificilmente encontrará paralelo em qualquer outro lugar do planeta. Não se trata de uma afirmação jogada no ar, sem base, pois este amplo panorama fala por si, é a prova.
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