A partir de julho
começa a funcionar no bairro da Liberdade a mais nova
franquia paulistana do Centro de Dança Jaime Arôxa. A
linha pedagógica será a mesma das outras dez unidades
da marca, no Rio de Janeiro (Botafogo, Niteroi, Recreio, Meier,
Ipanema e Valqueire), São Paulo (Campo Belo e Casa Verde),
Recife e Curitiba. A novidade, e diferencial, é que esta
escola terá como público alvo maciçamente a
colônia japonesa radicada em São Paulo. O foco é
tão definido, que vai funcionar em estreita
cooperação com a academia de Márcia Fujii (ex-capa
do Dance), de fortes raízes na colônia, e
especializada em dança internacional. As duas academias,
inclusive, dividem o mesmo andar de um prédio da rua
Conselheiro Furtado, onde também funciona há anos um
espaço de karaokê e danças orientais.
O empreendimento era um sonho antigo do sansei (brasileiro
neto de japoneses) Marco Kina, que assina profissionalmente da
forma como é conhecido, Marquinho Kina. Seu perfil, como se
verá a seguir, pode ser resumido numa palavra:
determinação. Aos 36 anos de idade, Marquinho
já passou por várias experiências. Conheceu
sucessos e fracassos, teve sonhos, lutou por eles, e conheceu o
outro lado, o da realidade dura e implacável, que não
perdoa. Ao ler sua história, você concordará que
muitos teriam desistido, buscado um emprego de salário no fim
do mês, tentado a suposta segurança. Mas o temperamento
de Marquinho rejeita o comodismo, prefere a luta e o risco. Ao abrir
sua primeira escola de dança, com o nome e a linha do mestre
que é seu ídolo, Jaime Arôxa, ele prova isso.
Aos 13 anos já praticava
artes marciais. Aos 20, montou com um amigo sua primeira
academia, especializada em artes marciais e
musculação. Ficava na Zona Leste e durou
só dois anos. Causa: sua decisão de ir morar e
trabalhar no Japão. Embarcou em março de 1990
com seu único irmão, mais velho, que continua
lá até hoje. |
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Além de largar a academia, Marquinho trancou
matrícula no terceiro ano do curso de educação
física. O sonho era ter um prédio próprio da
academia. Isso exigia dinheiro, e o Japão era o mito do
paraíso capitalista, onde todos enriqueceriam e seriam
felizes para sempre. A viagem de Marquinho foi no início do
grande boom, quando surgiu a palavra dekasseguis, e
que logo aumentaria ainda mais em conseqüência do plano
Collor, que criou do dia para a noite uma legião de novos
pobres e desesperançados.
Hoje, olhando para o passado, que na verdade é recente,
Marquinho classifica aqueles dias como uma aventura de adolescente.
Pouco importa. A experiência que adquiriu, morando um ano e
três meses no Japão, em condições
adversas, será um referencial para o resto de sua vida. Foi
lá que morreu o adolescente e nasceu o homem. "A vida
nos ensina que as coisas não são como a gente na
verdade quer", observa. Viveu em Hananatsu, perto de
Tóquio, a porta de entrada da maioria dos brasileiros que
vão tentar a vida no Japão. A cidade, de cerca de 400
mil habitantes, já chegou a ter quase cem mil brasileiros.
"A gente falava mais em português do que em
japonês", recorda, lamentando não ter se
aprofundado no idioma dos seus pais e avós.
"Foram muitas histórias, mais ruins do que boas,
porque fui para lá muito despreparado", avalia.
"Não sabia falar o idioma, estava com a cabeça
cheia de fantasias, e não tinha mais a família, os
amigos, a profissão e um estabelecimento próprio, a
faculdade e o ambiente universitário. Coisas pelas quais
batalhei muitos anos. Você chega em outro país e
dá de cara com uma cultura totalmente diferente. O pior
é que de uma hora para outra você é surdo, mudo,
analfabeto. De repente, percebe que tem a cara deles, mas não
tem a alma". O trabalho era pesado, como operário,
mão na graxa, em indústria de autopeças. O
ganho, por hora trabalhada, induzia a um esforço
frenético por horas extras. Só que a intensidade
é sempre no pico total, que exaure. A produção
das 8 horas da manhã tinha que ser a mesma das 8 horas da
noite. Qualquer vacilada, vinha advertência. O único
intervalo era de cinco minutos, para um café e ir ao
banheiro. Agora, imagine isso todos os dias. O homem-máquina
que Charles Chaplin eternizou em "Tempos Modernos"
não desapareceu e Marquinho pode garantir que foi um deles.
Mas ganhava dinheiro? - vai perguntar o leitor. Ganhava, mas
só dava para acumular economias se não gastasse,
porque a vida no Japão é caríssima. Voltar para
casa com os bolsos cheios, meta de todos que viajavam e trabalhavam
nessas condições, tinha um alto custo: viver com o
essencial, o que significa abrir mão de qualquer qualidade de
vida e de prazeres básicos, como a boa mesa, passeios, vida
noturna, consumo. "No dia em que estava voltando para o Brasil,
foi como um flash na minha vida. Mas quando estava lá parecia
uma eternidade", recorda.
Falando assim, parece que tudo foi ruim. Não é
verdade. A ida dos pais ao Japão, para um reencontro familiar
e visita à ilha onde nasceram, Okinawa, foi um momento
mágico e inesquecível. Foram recebidos com festas
pelos parentes, visitaram lugares bonitos, resgataram raízes
quase esquecidas, aspiraram o aroma das cerejeiras, sentiram na alma
o Japão milenar e lendário. A hora do retorno estava
chegando e Marquinho percebeu que sua vida tinha agora um marco
divisor, o antes e o depois do Japão. Começava
também ali sua reintegração com a vida da
colônia radicada na Liberdade, pois a partir de agora suas
referências eram outras, bem mais claras e profundas.
Através da dança reatou esses laços, dando
aulas para grandes grupos nas associações japonesas.
Antes da mudança, para abrir a academia de artes marciais,
Marquinho investiu seis anos de esforços intensivos e
conquistou a faixa preta. Na volta, retomou as aulas na Faculdade de
Educação Física, que tinha passado de
três para quatro anos. Um acidente em treinamento,
porém, barrou seus projetos. Num salto mortal, em treinamento
de ginástica olímpica, sofreu contusão no ombro
direito. Na virada, caiu com o braço sob as costas.
Não conseguia mais treinar, consultou diversos especialistas,
cada um dizia uma coisa, e acabou tendo que fazer uma cirurgia, em
1993, colocando um pino. A recuperação exigiu mais de
três meses de repouso e fisioterapia, suficientes para
desmotivá-lo. Assim largou, pela segunda e definitiva vez, a
faculdade. Quando conseguiu voltar a treinar optou pelo Tai Ti
Chuan, mais leve, e que ajudava na restauração
óssea e muscular.
Em 1994, influenciado pelo modismo das franquias, então
uma novidade, deu um passo grande demais. Tão grande que o
derrubou e deixou seqüelas por longo tempo. Estava procurando
negócios, visitou uma feira, e saiu de lá todo
entusiasmado. Com suas economias, mais ajuda da mãe, que
estava no Japão, investiu tudo o que tinha numa franquia de
testes de ginástica passiva. Foram quase 50 mil
dólares, que entraram gradualmente pelo ralo, sem dar o
retorno esperado. Em vez de lucros, ganhou dívidas. Tentando
fechar o ralo, deixava de lado sua outra academia, de artes
marciais, o que só aumentava os problemas. Era
inevitável, pois ao dispensar empregados, por causa da crise,
tinha ele próprio que assumir as funções.
Atolou-se em dívidas, teve que vender sua parte na sociedade
de artes marciais, e viu sua vida transformada num inferno. Isso
trouxe depressão, mau humor, perda de auto estima.
Tudo vai mal, quando de repente surgem os amigos de
adolescência, convocando: "sai dessa, vamos para o
baile!" Marquinho resistia à idéia –
"baile? Vocês estou loucos". Acabou indo.
Começava a onda do axé, lá por 1995. A turma
bebia, ele idem, claramente querendo fugir da realidade. Como tinha
todo um histórico de trabalho com o corpo, e com a
"ajuda" de alguns copos, para soltar o freio de
mão, não dava outra: entrava na pista e arrasava,
revelando um talento natural e invejável para a dança.
Pegou gosto, passou a freqüentar locais de dança, e
não demorou muito para se interessar pela dança de
salão. Como tantos outros, teve no Lambar sua primeira
"escola", naquela fase quente do pagode. As aulas eram
precárias, não havia técnica de ensino,
então quem tinha algum talento pegava o bonde andando mesmo.
Marquinho não só pegou, como virou condutor.
Dançava bem, puxava coreografias de axé, e quando
percebia havia um enorme grupo às suas costas acompanhando os
passos. Isso trouxe uma frase nova aos seus ouvidos, que se repetia
sempre, das mais diferentes bocas: "você tem que dar
aulas de dança". Certa noite, conhece Lia, aluna de
Celso Vieira, quando sua escola ainda se chamava Maria Antonieta.
Lia conta sobre a escola e não tem muito trabalho para
convencer Marquinho a fazer uma visita. Torna-se aluno. No
começo, confessa, com certa resistência ao bolero,
justo a paixão de Celso. Queria pagode e coisas mais
agitadas. Mesmo ainda endividado, ficou quase um ano na academia,
onde mudou sua visão sobre dança, a maneira de dar
aula, etc, e passou até a gostar de bolero.
Em busca da diversidade de informações, mais tarde
entrou na escola de Jaime Arôxa, onde foi aluno, bolsista,
monitor, assistente, integrante da companhia de dança e,
finalmente, instrutor. Mas bem no início, quatro meses
depois, foi surpreendido com um convite: dar aulas numa
associação da colônia japonesa, a Okinawa. Fica
relutante, não se acha preparado, mas pondera que o pessoal
é totalmente iniciante. Logo, não teria razões
fortes para recusar. Começava, ali, o novo professor. Na
primeira aula havia 30 alunos; na segunda, 40; na terceira, 50.
Então trouxeram microfone, Marquinho se atrapalhava, se
enrolava no fio. O crescimento rápido da turma assustou,
aumentou sua responsabilidade, e foi buscar aulas e mais aulas com
Marcelo Cunha, Karina Sabah, e com o próprio Jaime sempre que
possível. Além de evoluir em sua dança,
concentrava-se também na maneira como ensinavam. Os japoneses
tinham grande dificuldade e isso favorecia o laboratório do
professor em formação, porque aumentava seu
esforço didático, tinha que buscar respostas, achar
soluções, fazer a turma superar barreiras. Isso foi
há seis anos e ele continua dando aulas na
associação. É uma relação muito
afetiva. Quando Jaime Arôxa fez o primeiro encontro
internacional, no Rio, Marquinho ainda estava com o problema das
dívidas. Queria muito, mas não podia ir. Num gesto
bonito, o pessoal da colônia se cotizou e pagou as despesas.
Foi um momento muito emocionante em sua vida. Coisa que só
acontece com quem merece.
Milton
Saldanha
Jornalista