Jornal Dance - Antonietta
Entrevista : Maria Antonieta
Maio/1997
"Ballroom é como soldado nazista marchando. Não vai pegar no Brasil."
Milton Saldanha e Rubem Mauro Machado
Aos 70 anos, completados dia 15 de maio, e depois de ter vencido um câncer, Maria Antonieta continua com uma vitalidade incomum: dança e dá aulas de dança, curte os bailes de gafieira do Rio de Janeiro, tem um namorado bem mais jovem, e preserva sua vaidade. Ao posar para a capa desta edição do Dance, junto aos históricos Arcos da Lapa, pertinho de sua casa, numa região boêmia que deixou muitas lendas, fez questão de estrear seu último vestido de baile, criado para sua festa de aniversário. Ao lado de tudo isso, fala sem parar, com facilidade de expressão e riqueza de vocabulário surpreendente para uma pessoa que só cursou o antigo primário. Nesta entrevista, obviamente resumida para publicação, ocupou mais de uma fita de gravador, num depoimento dinâmico, agora incorporado ao acervo de documentos sonoros do jornal.
Com 1,50 metro de altura e magra, a fortaleza de Maria Antonieta parece fugir da falta de espaço físico para irradiar-se em sua volta. É impossível não se absorver sua energia positiva, sua vontade e prazer de viver, sua explosão de palavras e gestos que transformam uma mulher pequenina e de aparência frágil numa dama poderosa e temida pela franqueza e senso crítico, embasados em indiscutível conhecimento técnico e sensibilidade estética.
Mas quem é, afinal, esta mulher que hoje tem seu nome homenageado em duas escolas de dança de salão, uma em São Paulo e outra no Rio; é tema e personagem de um documentário atualmente em fase de edição, produzido por um famoso cineasta, nada menos que Silvio Tendler; nome do salão de uma das mais tradicionais gafieiras cariocas, a Estudantina; musa inspiradora do maestro Guerra Peixe; tema de um livro a ser lançado brevemente, sobre sua vida, escrito pela jornalista Tereza Drummond, com prefácio de Glória Perez; detentora de uma medalha de ouro outorgada pela Unesco?
Maria Antonieta foi a precursora desse movimento de dança de salão que hoje curtimos, dividindo espaço na história com a célebre Madame Poças Leitão, que desejou conhecer mas não teve chance. Madame, que na verdade foram duas pessoas, não está mais entre nós. Maria Antonieta aí continua, e vai continuar por longo tempo, como a grande mestra dos mestres que já se consagraram, sendo expoentes Jaime Arôxa e Carlinhos de Jesus, estrelas que ela esculpiu com refinamento.
Deixemos que Arôxa conte mais: "Ela foi o elo de ligação entre o passado e o presente, pois em uma época em que as danceterias proliferaram, promovendo o afastamento dos pares, foi ela a responsável pelo resgate da importância da dança de salão. Não bastasse esse fato, ela também representa, na sua essência, a mais viva expressão da dança".
Dance - Como tudo começou?
Antonieta - Perdi meus pais aos 11 anos. Fiquei com os avós paternos e aos 13 anos mudamos de Manaus, onde nasci, para o Rio. Éramos seis irmãos e as dificuldades financeiras imensas, porque meu avô estava aposentado, sustentando os netos, uma filha solteira e um filho casado e desempregado. Tive que começar a trabalhar muito cedo. Ele morreu e ficou só minha avó. Fui garçonete, operária de uma fábrica de roupas, empregada doméstica. Num belo dia, quando eu já estava com 17 anos, lendo o Jornal do Brasil vi um anúncio da Academia Moraes de Dança de Salão, pedindo moças maiores de l8 anos que quisessem ser profissionais de dança.
Dance - Essa academia foi famosa.
Antonieta - Era a única que existia. Faltavam só 15 dias para eu completar 18 anos, então me arrumei toda e me mandei. Quando cheguei lá havia umas 30 ou 40 candidatas, todas muito bonitas, e a maioria pensando que se tratava de um cabaré, porque o anúncio não tinha especificado que o cargo era de "auxiliar de ensino". Foram fazendo o teste e o Moraes mandando embora. Sobrei, com mais cinco moças. A mulher dele era muito ciumenta e percebeu que ele se concentrava nas mais bonitas, mais vistosas. Eu era muito miudinha, não tinha cara de mulher nem de menina, nem busto tinha. Então ela falou "olha, pega a mocinha ali, ela está perdendo tempo, sentada". Eu já dançava muito, nos clubes, nos frevos, nas tardes dançantes. Moraes fez o teste e gostou da minha dança. Realmente eu tinha prática, só não tinha técnica.
Dance - Ele foi o seu mestre.
Antonieta - Um grande mestre. Era o único na época, anos 50, e tinha cinco academias no Rio. Na verdade comecei com ele quando tinha só uma, nos anos 40. Quando decidi sair ele quase teve um treco. Arranjei um namorado, Lorival Rondon, que se tornou pai dos meus filhos, que não queria que eu trabalhasse. Homem naquela época era machão, mandão. Saí da academia. Vivi com ele 20 anos. Mas voltei a dar aulas escondido. Ele saia para trabalhar e eu ia para os clubes dar aulas, lá nos subúrbios (risos). Passei a dar aulas também em casa. Um dia ele chegou e a casa estava cheia de homens. Ele perguntou aos meus filhos - "escuta, vai ter baile hoje aqui, festa?" - e eles "não, a mamãe está dando aulas". Quando os caras foram embora ele veio discutir comigo, mas avisei que continuaria e três meses depois voltei para a Academia Moraes. O que sei hoje devo a ele.
Dance - Ficou tudo bem?
Antonieta - Bem nada. Meu marido não aceitou, foi embora, e fiquei sustentando os filhos, só com dança. Hoje eles são três profissionais de dança, com outras profissões paralelas. Depois tive mais dois maridos. O segundo deixava eu dançar, mas era ciumento. O terceiro, com quem vivi 13 anos, foi quem me levou mais para cima. Os três tinham sido meus ex-alunos.
Dance - E o Moraes, com que aprendeu?
Antonieta - Com um professor norte-americano, em Portugal, onde havia morado por uns tempos.
Dance - Por que as academias desapareceram?
Antonieta - Foi no auge da discoteca, no final dos anos 60. Todas fecharam. O Moraes e seus irmãos, que o ajudavam, já morreram.
Dance - Quando a sra. começou a ficar conhecida?
Antonieta - Sem a academia do Moraes, já no terceiro casamento, aluguei uma salinha e comecei a dar aulas como autônoma. Aí a imprensa começou a me procurar, porque comecei a dançar no elite, bonito, mostrando o que sabia, com meu partner, o Mário, ex-aluno da Moraes. Todo mundo achava uma dança diferente, mais clássica. Porque o pessoal da gafieira dançava bonito, eram todos autodidatas, mas o que não tinham era elegância. Então muita gente veio me ver dançar, como o Klauss Vianna, que ficou maravilhado. Virei assunto nos grandes jornais. Mas de certo modo não era nem por mim, eu era a última dos moicanos da Moraes e muitos queriam saber o que tinha acontecido com ele e com as escolas. E com essa fui crescendo, porque vim realmente de um grande mestre de dança. Dele jamais vou esquecer. É claro que cresci mais, porque se a gente aprende bem só pode crescer mais. Veja o Jaime Arôxa. O Carlinhos de Jesus não aprendeu técnica de ensino comigo, foi com a Estelinha. Eu colocava o Jaime para dar aulas, ele foi assumindo uma técnica, e criou seu próprio estilo. Mas por quê? Porque estava alicerçado. Se você não estiver alicerçado não vai conseguir nada. Infelizmente, temos muitos falsos profissionais. Agora há uma pessoa querendo regulamentar a situação de profissional de dança de salão e vou dar uma força. Temos que botar essa gente prá estudar, não só a técnica de ensino, como a história da dança. A dança de salão também tem uma história.
Dance - Seu aprendizado teórico tem que base?
Antonieta - Dos livros, inclusive Almanaque Abril. Tenho um livro que comprei num sebo há 15 anos, chamado Discotec, com a história dos ritmos, da dança de salão e muitas outras coisas. É uma raridade, que não se encontra em lugar nenhum. A dança de salão veio do minueto, da valsa vienense, do clássico. Depois da Revolução Francesa foi quando, pela primeira vez, o homem cingiu a cintura da dama para dançar uma valsa vienense. Foi o maior escândalo da época. Leio muito, Freud, psicologia, cinema, teatro, tudo o que se possa imaginar. Passo os domingos lendo, principalmente sobre minha profissão. Se amanhã tenho que dar uma entrevista não vou ligar para fulano perguntando "me diz aí o que posso dizer". (Risos).
Dance - Como a sra. viu a mudança e evolução da dança de salão nestes anos todos?
Antonieta - Dos anos 70 para cá ela mudou, com a entrada de mais gente e jovens. Surgiram novos professores, jovens bonitos, aprendendo até ballet clássico para fazer dança de salão, jazz para poder levantar a perna, essas coisas.
Dance - Isso não é bom?
Antonieta - Salão é uma coisa, jazz e ballet moderno são outras. Muda para o exibicionismo. Estão estilizando, levantando perna, batendo no rosto dos outros.
Dance - Dança de salão é arte ou diversão?
Antonieta - As duas coisas.
Dance - Então, se é arte, não tem que mudar, incorporar coisas novas?
Antonieta - Pode mudar, sim. Mudei meu estilo de dançar e existem várias coisas que criei. Só que não vou atrapalhar ninguém no salão. Com trezentos casais num baile não se pode fazer coisas de shows. No meu tempo também havia exibicionismo, mas no palco. Quanto ao balé, e eu trabalhei na Escola de Ballet do Teatro Municipal, ninguém, nenhuma das grandes profissionais que conheci, aprova que um homem de 23 anos vá fazer ballet clássico. Não pode. Isso se começa com cinco ou seis anos. O que se pode fazer é abertura, alongamento.
Dance - Como foi essa sua experiência numa escola de ballet?
Antonieta - Fiz coreografia no Teatro Municipal com bailarinos, mas nunca dei aula de ballet. Foram eles que votaram para que eu ganhasse a medalha de ouro da Unesco.
Dance - Voltando a uma das questões anteriores, por que a dança de salão cresceu tanto?
Antonieta - Por muitas razões. As pessoas andavam muito sozinhas. Marido separando de mulher. Filho saindo de casa. Gente buscando terapia. Então é ótimo que continue crescendo, mas sem máscara.
Dance - O meio é competitivo. O que a sra. acha disso?
Antonieta - Bom, porque aí você vai conhecer quem é o bom e quem é o ruim. Conheço pessoas que fizeram aulas com vários chamados profissionais e estão com pé torto, indo para o ortopedista... Vi uma vez um ortopedista falando na TV que a época em que mais ganhou dinheiro foi na fase da lambada. Faziam aquele jogo de pescoço sem aquecimento, a frio, sem saber como fazer. Isso é falta de conhecimento do corpo. É preciso saber anatomia. Não é só em outras danças que há riscos. Na dança de salão também, insisto, se você não souber pisar, se comportar, colocar sua coluna como se faz no clássico, realmente vai se prejudicar. Mais tarde estará todo torto. Observem alguns dançarinos da gafieira, da velha guarda. Eles têm defeito no corpo. São curvados, porque dançavam em má posição. Para não encostar na dama, se esquivavam.
Dance - A propósito de competição, o que se pode esperar do Ballroom, que estão tentando trazer para o Brasil?
Antonieta - O estilo do brasileiro, ou do latino-americano, jamais vai se adaptar a esse Ballroom. De pescoço duro, para cima e para baixo, fazendo pose de nazista, todo mundo dançando duro. Não aceito. Ninguém vai me impor isso. Minha alegria tem que ser esfuziante. Não vou dançar feito soldado alemão nazista marchando. Aqui não vai pegar, a não ser entre pernósticos.
Dance - Além do Carlinhos e do Jaime, que outra grande estrela passou por suas mãos?
Antonieta - Estrela, mesmo, foram só os dois, porque levaram a sério a coisa. O Carlinhos já dançava quando veio ter aulas comigo, um grande talento. Tive alunos que hoje estão dando aulas no Rio, são muito bons, como o Oswaldo. Há também um grande professor dele, chamado Marquinhos. Mas o que mata qualquer pessoa é a vaidade, o pedantismo. O Jaiminho, no início, começou a botar na crista no alto. Então chamei-o e disse, "olha, não é assim, você é muito bom, um grande profissional, mas não seja muito orgulhoso nem vaidoso. Deixe que as pessoas te adotem". O Carlinos, para mim, é mais show.
Dance - Ainda é possível alguém construir um nome sólido em dança de salão, apesar de toda a concorrência que está aí e da proliferação de academias?
Antonieta - É, mas se tiver quem ajude, quem dê um empurrão, como eles também tiveram. O Carlinhos de Jesus teve o empurrão da coreógrafa Regina Miranda, aí foi dançar com a Elba Ramalho, essas coisas. O Jaime demorou muito para aparecer na TV, mas entrou nas novelas.
Dance - De modo geral, incluindo os círculos não acadêmicos, a sra. acha que as pessoas estão dançando bem no Rio de Janeiro?
Antonieta - Acho sim, mas insisto: o exibicionismo é que está estragando tudo.
Dance - Inibem o público.
Antonieta - Exatamente. Por causa disso as pessoas chegam nos bailes e não querem dançar. Ficam tão irritadas que nem se interessam mais em fazer aulas de dança.
Dance- Que riscos a sra. vê nesse pessoal que não é bem preparado e se coloca como professor de dança? Que danos isso pode causar?
Antonieta - Tem gente que chega aqui reclamando de dores nas costas. Teve aulas com fulano ou beltrano. Olho e comento: claro, você está pisando de calcanhar, está pisando errado. Você tem que saber pisar, distribuir o peso do seu corpo. Senão vai adquirir lordose, problemas de coluna e outros bichos mais. Há professores brutos, ignorantes, que jogam a dama como se fosse um saco de batatas. São analfabetos, não conhecem nada de anatomia.
Dance - Conte-nos sobre sua doença. Como superou isso?
Antonieta - Tive cancer há 13 anos, aos 57 anos de idade. Fiquei internada no Hospital do Cancer, todo mundo achava que iria morrer. Então proibi que ficassem chorando perto de mim e coloquei na cabeça que iria viver. Além disso, sou muito mística, fiz tratametos espirituais. Sou kardecista, sem frequentar, mas gosto de ler o Evangelho Segundo o Espiritismo. Fiz duas operações espirituais. Então não é só a dança, é também o misticismo que me sustenta. Acho que vou viver mais cem anos!
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