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Jornal DAA - Col. da Caminada - 67

COLUNA DA CAMINADA


O ROSTO DE BERTHA

 

É inconfundível. É belo, será para sempre belo, cênico, poderoso, inesquecível.

Não sabíamos da homenagem a Bertha Rosanova. Foi uma emocionante surpresa propocionada pelo espetáculo de encerramento da Escola de Danças Maria Olenewa.

O pretexto? Bertha não precisa dele, mas registrava-se ali os 45 anos em que, graças à competência e confiança de d. Eugênia Feodorova e à garra dos nossos bailarinos fora montado pela primeira vez nas Américas "O Lago dos Cisnes" na sua versão integral.

Ela entrou e demorou alguns segundos para falar. Como dizia o texto que a introduzira, sua voz soa mansa e serena; tanto quanto foi magnética a sua dança. Eu e EricValdo nos levantamos para aplaudi-la sabendo que é pouco, muito pouco, para o que Bertha simboliza para o Corpo de Baile do Theatro Municipal, para sua história e para o público que a conheceu, aplaudiu e fez dela seu ídolo maior. Flores, reportagens, entrevistas, grande gala, tudo cabe numa homenagem a uma artista de tal envergadura.

Olhamos seu belo rosto, um dos únicos que conheço que dispensa maquiagem forte num palco daquele porte. Seus traços são, ainda hoje, iluminados, definidos, dramáticos. 

Pela nossa memória passaram momentos vividos junto a essa grande artista, Eric muito mais do que eu. Não se comunicam sempre, não se vêem com tanta frequência, mas o bem-querer é profundo, desconhece detalhes menores, prescinde de contato. A raiz é tão sólida como a de um jatobá. A amizade entre Bertha e Eric é indestrutível.

Lembramo-nos da homenagem que eu e Vera Aragão havíamos prestado aos que haviam participado daquela encenação no aniversário dos seus 40 anos na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Contáramos com o entusiasmo e a sensibilidade histórica da dra. Veronica Haikal, então, diretora da Instituição, mas ver Bertha no palco do Municipal suscitou recordações de suas grandes interpretações: "Noite de Walpurgis", tanto na versão de Tatiana Leskova quanto de Feodorova, "Galo de ouro", igualmente nas versões das duas mestras, "Luta Eterna"  de Igor Schwezoff, "Giselle" e “Romeu e Julieta” de Maryla Gremo.

"Romeu e Julieta". Como esquecer dela e Aldo Lotufo nessa obral magistral? Em casa reli o capítulo final do livro que escrevi sobre a vida de Gremo para a série Memória dos Artistas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no qual contei com o depoimento de Marcelo Misailidis; resolvi disponibilizá-lo nessa coluna. Aí vai:

"Na platéia o silêncio é tão imenso que sufoca.

No palco Bertha Rosanova e Aldo Lotufo interpretam a mais bela e inspirada versão que conhecemos da Abertura Fantasia de Tchaikovski de Romeu e Julieta.

A química entre aqueles bailarinos foi única na história do Theatro Municipal. Ela, cabelos muito negros, rosto definitivamente cênico, dionisíaca, uma presença poderosa e profundamente feminina e sensual; ele louro, belo, perfil clássico, a própria imagem idealizada de Apolo-Romeu.

Nada nem ninguém os superou em cena neste ballet. Na coreografia de Maryla só aparecem os dois personagens título, mas é como se toda a tragédia shakespeareana tomasse conta do tempo, do espaço e da música. Tudo é totalmente preenchido pela criação coreográfica.

Quem dança e quem vê sequer percebe que o faz há vinte minutos. Sem parar.

Romeu morre com a urgência que marcou sua vida tão breve quanto intensa.

Morte de Julieta, momentos finais da melodia. A coreografia expressa a dor, o desespero e a decisão apaixonada, correspondendo à expectativa do público e dos artistas.

"The tragic world is a world of action um mundo trágico é um mundo de ação", frase de Shakespeare, bem organicamente adequada à cena que traduz autor e compositor.

Nem luta ou vida na eternidade, nada que contrarie a inspiração, a sugestão musical e o texto.

A composição de Tchaikovski, esse romântico descaradamente emocional, envolve a coreógrafa, os bailarinos, a orquestra.  E o público!!! Ninguém, nem a equipe técnica resiste à força daquele momento de verdade desses grandes artistas: Gremo, Rosanova e Lotufo.

Uma tempestade de aplausos contrasta com o absoluto silencio e exerce um efeito catártico sobre a audiência. Na memória de quem vê, de quem viu, uma cena que fica marcada para sempre.

Em 1992, Bertha e Aldo remontaram para mim e Marcelo Misailidis o Romeu e Julieta de Maryla.

Incontáveis foram os dias em que, assistindo a ambos, meus olhos se enchiam de lágrimas. Em vários momentos eles voltavam a ser Romeu e Julieta, a famosa cumplicidade se estabelecia de novo e eles recuperavam sua juventude.

A meu lado Misailidis, aos vinte e dois anos, surpreendia-se sendo envolvido por uma espécie de túnel do tempo.

Quem era Maryla Gremo? Como tinham dançado Bertha e Aldo? Que mística nos mantinha tão emocionados a todos os que assistiam aos ensaios? Isso é ele mesmo que pode explicar melhor:

  muito difícil falar de alguém com quem não tivemos a oportunidade de conviver; mesmo tendo dançado uma de suas obras.

Foi através da emoção do que foi vivido e a mim transmitido por Bertha Rosanova e Aldo Lotufo e por toda uma geração de artistas por quem nutro imensa admiração, que obtive as respostas para desvendar Maryla Gremo e me sentir seguro para participar do que chamaria de restauração de Romeu e Julieta.

Como muitas de suas obras, essa permanecia uma linguagem desaparecida. Relatos, retratos, ensaios com Eliana Caminada deram início a uma emocionante aventura em que, juntos, vasculhamos recordações.

O resultado revelou o que sempre procuro e raramente encontro: um produto de pesquisa inteligente e de uma inspiração rica e fértil, que dá ao intérprete a possibilidade de se realizar plenamente.

         Foi assim, como quem desvenda mistérios, como quem sonha ao rever um raro e precioso álbum de fotografias, como quem se deslumbra com a música de Tchaikovski, como quem dança William Shakespeare traduzido em movimento, que conheci Maryla Gremo... "


Eliana Caminada é professora de História da Dança na UniverCidade e Universidade Castelo Branco

e foi primeira bailarina do Theatro Municipal – RJ

Página pessoal: http://www.elianacaminada.com


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