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COLUNA DA CAMINADA
O ROSTO DE BERTHA É inconfundível. É belo, será para sempre
belo, cênico, poderoso, inesquecível. Não sabíamos da homenagem a Bertha
Rosanova. Foi uma emocionante surpresa propocionada pelo espetáculo de
encerramento da Escola de Danças Maria Olenewa. O pretexto? Bertha não precisa dele, mas
registrava-se ali os 45 anos em que, graças à competência e confiança de d.
Eugênia Feodorova e à garra dos nossos bailarinos fora montado pela primeira
vez nas Américas "O Lago dos Cisnes" na sua versão integral. Ela entrou e demorou alguns segundos para
falar. Como dizia o texto que a introduzira, sua voz soa mansa e serena; tanto
quanto foi magnética a sua dança. Eu e EricValdo nos levantamos para aplaudi-la
sabendo que é pouco, muito pouco, para o que Bertha simboliza para o Corpo de
Baile do Theatro Municipal, para sua história e para o público que a conheceu,
aplaudiu e fez dela seu ídolo maior. Flores, reportagens, entrevistas, grande
gala, tudo cabe numa homenagem a uma artista de tal envergadura. Olhamos seu belo rosto, um dos únicos que
conheço que dispensa maquiagem forte num palco daquele porte. Seus traços são,
ainda hoje, iluminados, definidos, dramáticos.
Pela nossa memória passaram momentos
vividos junto a essa grande artista, Eric muito mais do que eu. Não se
comunicam sempre, não se vêem com tanta frequência, mas o bem-querer é
profundo, desconhece detalhes menores, prescinde de contato. A raiz é tão
sólida como a de um jatobá. A amizade entre Bertha e Eric é indestrutível. Lembramo-nos da homenagem que eu e Vera
Aragão havíamos prestado aos que haviam participado daquela encenação no
aniversário dos seus 40 anos na Escola de Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro. Contáramos com o entusiasmo e a sensibilidade histórica da dra.
Veronica Haikal, então, diretora da Instituição, mas ver Bertha no palco do
Municipal suscitou recordações de suas grandes interpretações: "Noite de
Walpurgis", tanto na versão de Tatiana Leskova quanto de Feodorova,
"Galo de ouro", igualmente nas versões das duas mestras, "Luta
Eterna" de Igor Schwezoff,
"Giselle" e “Romeu e Julieta” de Maryla Gremo. "Romeu e Julieta". Como esquecer
dela e Aldo Lotufo nessa obral magistral? Em casa reli o capítulo final do
livro que escrevi sobre a vida de Gremo para a série Memória dos Artistas do
Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no qual contei com o depoimento de Marcelo
Misailidis; resolvi disponibilizá-lo nessa coluna. Aí vai: "Na platéia o silêncio é tão imenso
que sufoca. No palco Bertha Rosanova e Aldo Lotufo
interpretam a mais bela e inspirada versão que conhecemos da Abertura Fantasia
de Tchaikovski de Romeu e Julieta. A química entre aqueles bailarinos foi
única na história do Theatro Municipal. Ela, cabelos muito negros, rosto
definitivamente cênico, dionisíaca, uma presença poderosa e profundamente
feminina e sensual; ele louro, belo, perfil clássico, a própria imagem
idealizada de Apolo-Romeu. Nada nem ninguém os superou em cena neste ballet. Na coreografia de Maryla só
aparecem os dois personagens título, mas é como se toda a tragédia
shakespeareana tomasse conta do tempo, do espaço e da música. Tudo é totalmente
preenchido pela criação coreográfica. Quem dança e quem vê sequer percebe que o
faz há vinte minutos. Sem parar. Romeu morre com a urgência que marcou sua
vida tão breve quanto intensa. Morte de Julieta, momentos finais da
melodia. A coreografia expressa a dor, o desespero e a decisão apaixonada,
correspondendo à expectativa do público e dos artistas. "The
tragic world is a world of action – um
mundo trágico é um mundo de ação", frase de Shakespeare, bem
organicamente adequada à cena que traduz autor e compositor. Nem luta ou vida na eternidade, nada que
contrarie a inspiração, a sugestão musical e o texto. A composição de Tchaikovski, esse
romântico descaradamente emocional, envolve a coreógrafa, os bailarinos, a
orquestra. E o público!!! Ninguém, nem a
equipe técnica resiste à força daquele momento de verdade desses grandes
artistas: Gremo, Rosanova e Lotufo. Uma tempestade de aplausos contrasta com o absoluto silencio e
exerce um efeito catártico sobre a audiência. Na memória de quem vê, de quem
viu, uma cena que fica marcada para sempre. Em 1992, Bertha e Aldo remontaram para
mim e Marcelo Misailidis o Romeu e Julieta de Maryla. Incontáveis foram os dias em que, assistindo a ambos, meus olhos
se enchiam de lágrimas. Em vários momentos eles voltavam a ser Romeu e Julieta,
a famosa cumplicidade se estabelecia de novo e eles recuperavam sua juventude. A meu lado Misailidis, aos vinte e dois
anos, surpreendia-se sendo envolvido por uma espécie de túnel do tempo. Quem era Maryla Gremo? Como tinham dançado
Bertha e Aldo? Que mística nos mantinha tão emocionados a todos os que
assistiam aos ensaios? Isso é ele mesmo que pode explicar melhor: "É muito difícil falar
de alguém com quem não tivemos a oportunidade de conviver; mesmo tendo dançado
uma de suas obras. Foi através da emoção do que foi vivido e
a mim transmitido por Bertha Rosanova e Aldo Lotufo e por toda uma geração de
artistas por quem nutro imensa admiração, que obtive as respostas para
desvendar Maryla Gremo e me sentir seguro para participar do que chamaria de
restauração de Romeu e Julieta. Como muitas de suas obras, essa permanecia
uma linguagem desaparecida. Relatos, retratos, ensaios com Eliana Caminada
deram início a uma emocionante aventura em que, juntos, vasculhamos
recordações. O resultado revelou o que sempre procuro e
raramente encontro: um produto de pesquisa inteligente e de uma inspiração rica
e fértil, que dá ao intérprete a possibilidade de se realizar plenamente. Foi assim, como quem desvenda
mistérios, como quem sonha ao rever um raro e precioso álbum de fotografias,
como quem se deslumbra com a música de Tchaikovski, como quem dança William
Shakespeare traduzido em movimento, que conheci Maryla Gremo... "
Eliana
Caminada é professora de História da Dança na
UniverCidade e Universidade Castelo Branco
e
foi primeira bailarina do Theatro Municipal RJ
Página
pessoal:
http://www.elianacaminada.com
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