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MOSAICO Tempo em Camadas Depois de assistir Passatempo, de Renata Melo, no teatro Sérgio Porto, me surpreendi divagando sobre o espetáculo, como se tivesse feito parte dele. Uma sensação de ampliação interna havia se instalado em meu corpo. Voltei ao programa e reli um trecho de Géza Szamosi que diz: "os seres humanos, dentre as milhares de criaturas da terra, são os únicos que se preocupam com o que aconteceu antes de nascerem e especulam sobre o que acontecerá depois que se forem. São as únicas criaturas interessadas no tempo". A partir daí, constatei, mais uma vez, que a filosofia se traduz facilmente em dança, legítima representante da reflexão, da idéia e da sensação. O pensamento configurado na linguagem corporal é capaz de transportar o espectador para outros espaços desconhecidos, fazendo-os sentir "na pele" tanto a abstração quanto a ausência de corporeidade, como o peso da existência no mundo materializado das coisas. Nesse sentido, o tema de Passatempo me levou a embarcar nos devaneios induzidos pela poesia, cujos versos corporais tecem a vida como um fragmento da eternidade cósmica, a partir do caótico cotidiano ocidental. A cena abstrata do tempo ganhou legibilidade numa instância anterior à presença dos personagens, por meio de uma dança de percursos visuais. O espaço criado por Daniela Thomas e Patrícia Rabbat coloca a platéia do lado de fora, no conforto da escuridão, de onde se enquadra uma imagem do todo universal. Uma esfera formada por círculos concêntricos está suspensa a uma certa altura do canto esquerdo da linha diagonal descendente do palco. Este móbile parece ora avançar ora recuar, num movimento originado pela incidência da luz e do efeito da cor. O fundo e as laterais são tubos de plástico transparentes dispostos, simetricamente, em linhas verticais paralelas no mesmo lugar em que estariam a rotunda e as tapadeiras de um tradicional palco italiano, geralmente feitas de tecido opaco e preto, cuja função é a de encobrir o que não é para ser visto fora da ação principal no centro da cena. A transparência, porém, não esconde, mas permite entrever camadas do infinito. A iluminação de Ricardo Bueno dinamiza o interior visível das coxias, seres que repassam um caminho circular, em torno, por fora e por dentro do espaço cênico, mantendo o fluxo ininterrupto do tempo. A trilha musical composta por Marcelo Pellegrini completa a idéia de corte e de pulsação rítmica em perfeita sintonia com a ação dos dançarinos, sempre em trânsito, representando a longa trajetória da humanidade ou revelando, delicadamente, o corpo cotidiano mais simples, os gestos mais comuns, as perguntas mais freqüentes, as conclusões mais complexas. De um conjunto despersonalizado, os personagens se destacam como recortes, ocupando a cena com suas narrativas pessoais. A passagem do anonimato para a individualização do sujeito é sutil e bem realizada pelo elenco, com destaque para a composição de Roberto Alencar e Cláudia Missura. O mundo dos seres e das formas, então, se delineia com a dinâmica da luz refletida nas superfícies opacas da pele, dos tecidos e dos objetos. As figuras, de quando em quando, desaparecem como sombras e tornam-se quase invisíveis, para em seguida reaparecer, como seres que emergem do nada, de uma neutralidade acentuada pelo figurino de Ronaldo Fraga. De certo modo, todos parecem pertencer, simultaneamente, àquela curva contínua do tempo assim como aos pequenos quadros do agora. As narrativas concretizam o presente e os personagens individualizam tipos humanos em alguns momentos de suas existências. Tanto a seqüência das cenas quanto o desenho dos personagens delimitam, recortam e trazem fragmentos da vida comum para o aqui e agora. O roteiro parte do mais simples caminhar e os passos tecem uma suave, porém densa, coreografia naturalista pautada em gestos e posturas. Pensamentos e impressões sobre o tempo são expressos por um texto que também prima pela simplicidade. Nada é excessivo, nada é visceral. Não há tragédia nem drama humano, não há conflito interno nos personagens. O que acontece é somente uma passagem de tempo, sem a pressa provocada pelas modernas edições tecnológicas e pela ansiedade do virtuosismo técnico do corpo "malhado" (elementos muito utilizados nas partituras coreográficas contemporâneas). Uma montagem especulativa, em que a falta de urgência permite uma reflexão sobre nós mesmos, nos aproximando de outras realidades, tão ou mais simples que as nossas, enquanto praticamos um exercício de humildade diante da imponderável precariedade de nossos próprios pensamentos, que se desprovidos da superfície de seus corpos não podem existir, pois não têm de onde nem para quem se refletir. O que de fato pude contemplar foi o conjunto harmonioso de todos os elementos cênicos complementares uns dos outros, materializando o tempo, a música e a existência humana em finas camadas permeáveis do dia a dia. Bom de se ver e ouvir. Um alento. Volto, então, à linha do tempo, desenhada na curva de uma elipse, e retomo a pergunta: de onde vim, para onde vou? Questões que remetem à idéia antiga do círculo fechado, símbolo do universo, da totalidade, da permanência e da eternidade. Aprendemos que no limite interno da forma redonda do círculo estão contidos os elementos do caos original (grego) e reconhecemos que o que está dentro é o mesmo que está fora. Entretanto, acionados pela esfera em movimento os elementos se aglutinam e se re-organizam, de tal modo que se pode pensar o mundo das formas e dos seres como aquilo que pertence ao interior do círculo, em constante trans-formação. Um pedaço do caos organizado, diferenciado como símbolo do outro, do dividido, do inconstante e do finito. Por outro lado, e aproveitando uma citação do próprio espetáculo, a mola, por exemplo, é uma espiral que evolui no espaço numa trajetória circular em torno dela mesma, atraída pelo seu centro. Em conseqüência do avanço contínuo, nunca retorna exatamente ao mesmo ponto de onde partiu, configurando, outrossim, uma série infinita de elipses sobrepostas, como círculos que nunca se fecham. Esta seria a forma do tempo no mundo das coisas e nossa existência corresponderia a uma pequena porção desta espiral marcada pela distância entre dois pontos: o nascimento e a morte. Este segmento, que representa a nossa passagem por este mundo de realidades concretas, é uma medida diferenciada do todo universal, com um valor específico. A vida de cada um, assim como o que existe dentro do círculo, tem tamanho e duração distintos, de maneira que a existência humana contém, na sua trajetória irreversível, outros pontos que formam outros segmentos demarcadores da sua história. Porém, o que se pode apreender e conhecer é o que se experimenta neste espaço de tempo, nada antes, nada depois, mas à medida que a consciência do mundo se manifesta a partir da constituição fisiológica de um corpo-sujeito. Marina Martins é dançarina, coreógrafa, diretora, professora e pesquisadora
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