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Jornal DAA Mundo da dança - 57

O MUNDO DA DANÇA


NOVA MÁRCIA HAYDÉE

O olhar não é sempre unívoco, pode também ser polissêmico. Esse é o caso do intenso e sereno olhar de Márcia Haydée, que combina faíscas de inquietude, curiosidade e dinamismo com a calma visão de quem sabe que tudo, em definitivo, se traduz a um mero trânsito.

Meio século na dança equipou a bailarina brasileira com uma particular sabedoria; uma sabedoria que foi hidratada com outras águas, além da previsível fonte de Terpsicore.

O olhar de Márcia avança e espera simultaneamente, contém o brilho dos olhos da criança frente ao brinquedo novo e a íris dilatada da médium em transe. Contém opostos em estado puro, sem as habituais concessões dos olhos vendidos ao lobby do grande circo do consumo.

Foi com esse olhar que a Calas da Dança (como a definiu o crítico francês André Serpin anos atrás) desembarcou em plena selva amazônica para ser homenageada no marco do IX Festival Internacional de Dança da Amazônia, que se realizou no magnífico Theatro da Paz de Belém do Pará.

E Márcia não desembarcou sozinha, chegou com Günter Schöberl, seu marido e companheiro de projetos, um ser absolutamente especial que conjuga os mais luminosos verbos do esoterismo e o conhecimento natural.

Uma semana atrás, Márcia Haydée estava no palco, interpretando o papel principal de "Mãe Teresa de Calcutá e as Crianças do Mundo" de Maurice Bejárt. Produção com a qual o célebre coreógrafo francês lançou sua nova companhia "Compagnie M" em Lausanne (Suíça) no dia 18 de Outubro de 2002, encabeçada pelo brasileiro William da Silva Pedro e a argentina Luciana Roato, que segundo René Serpin será a nova Guillén européia. Uma premonição forte.

Nesta montagem Márcia tem larguíssimos textos, que interpretou em francês na estréia e pouco depois em alemão e em italiano; para a próxima temporada terá que memorizá-los em japonês. Quem disse que vida de estrela era fácil?

E a complexidade de agenda faz que Márcia tenha que usar seu tempo de modo intensivo. Desembarcou da Alemanha, embarcou para Manaus para visitar seu esplêndido teatro que leva o nome do estado e que foi imortalizado por Herzog em seu inesquecível Fitzcarraldo, depois Belém, Fortaleza, Palmas.... e em pouco mais de uma semana já estava encarnando novamente Mãe Teresa na Alemanha.

O motivo deste itinerário bizarro é que Márcia, além de receber uma homenagem e fazer uma sessão de autógrafos na sede da Amazônia Celular (empresa patrocinadora do FIDA) visitou locais na praia da Pipa, perto de Fortaleza e uma meseta solitária a mais de 500km de Palmas - Tocantins. E estas visitas respondem a um monitoramento de distintas regiões que Márcia e Günter estão fazendo para a futura realização de um curioso projeto. Por um lado a instalação de uma pousada com atividades diferenciadas e por outro um grande centro de práticas naturais e esotéricas, onde a yoga (ou melhor dito as yogas) e o chi-kung serão moeda corrente, em ambientes rigorosamente regidos pelo Feng-Chui.

É pelo menos curioso constatar que uma grande bailarina que canalizou sempre sua energia e seu tempo na dança encontre uma derivação tão surpreendente à sua carreira.

Não é em vão que em grandes festivais de dança, como em Viena, a primaballerina Márcia Haydée não dá aulas de ballet e sim de respiração para bailarinos, apoiada em suas ricas experiências com a Yoga.

Márcia encontrou uma nova curva em sua extensa carreira, uma curva que a levará a transitar outras instâncias da experiência corporal, que sintetizadas à luz de uma vida de estrela poderá produzir valiosíssimos ensinamentos para os bailarinos do século XXI.

E assim como esta incursão em outros universos cognitivos não impede Márcia Haydée de continuar sua vida debaixo dos refletores, tampouco lhe impede de continuar exercendo as outras funções que habitualmente desempenha fora do palco, como por exemplo, dar-lhe alma às obras de "seu" coreógrafo John Cranko, o que fez faz pouco tempo atrás no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e que fará novamente em 2003 no Ballet Municipal de Santiago.

Esta mulher brasileira de gloriosos 65 anos, que já foi Julieta e Blanche Dubois (e talvez ainda seja a Nora da Casa de Bonecas de Ibsen) é antes de tudo um signo vivo (e muito vivo) do melhor que tem Terpsícore em sua tropa deste planeta. Não é em vão que acaba de ganhar o Prêmio Especial Nijinsky, o Oscar da dança que chega a merecidas mãos.


Valério Césio e Márcia Haydée

Valerio Cesio

é crítico e coreógrafo


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