Jornal DAA Mundo da dança - 48
O MUNDO DA
DANÇA
REVISTINHA
PORTENHA POSMODERNA
"Hermosura" chega
a suas últimas apresentações na Trastienda em Buenos Aires com a integridade
da convicção. Musical de câmara com claro direcionamento dramático e genética
re-elaborada do teatro de revista; seria uma definição possível para este espetáculo.
El Descueve incorpora aqui, e assume um perfil parcialmente de gênero leve para
veicular inquietudes estilísticas que lhe são inerentes. Mais que nada se trata
de um grupo de artistas contemporâneos (ambos termos no melhor e maior sentido
da palavra) que se propõe ao fato cênico por si mesmos, e o abordam desde o
teatro, a música e a dança com igual vigor. Se bem que no El Descueve nem todos
os integrantes dançam, nem todos cantam e nem todos atuam; é um grupo que intrinsecamente
atua, canta e dança. E cada abordagem é feita com profundidade suficiente para
ser expressiva em si mesma. "Hermosura" mesmo cultuando uma estética de brechó,
o faz a partir de paradigmas da pós-modernidade, com simplicidade e economia
de linguagem. Carlos Casella, Ana Frenkel, María Ucedo, Gabriela Barberio e
Mayra Bonard constituem uma verdadeira equipe (harmoniosamente integrada aos
intérpretes convidados Daniel Cúparo e Juan Minujar), que encara a criação coletiva
com unidade de critérios, o que em um espetáculo dividido formalmente em quadros
é colocado a prova constantemente. "Hermosura" é um espetáculo que poderia fazer
parte da programação residente de Buenos Aires, do bom off-Broadway portenho,
e ser recomendado aos visitantes da cidade como mostra honesta da (ainda pequena
e tímida) vanguarda local. ESTRÉIA EM BUENOS AIRES O Ballet Contemporâneo do
Teatro San Martín estreou um programa misto no Teatro Presidente Alvear que
incluiu a reposição de uma obra de Nils Christe. "Purcell Pieces" é uma obra
intrinsecamente dinâmica e de espírito brincalhão, Christe propõe um colóquio
corpo a corpo com a partitura e faz disto um eixo dinâmico de sua criação. Assim
como King, Arrieta, Duato ou Pederneiras, Christe faz parte do clube dos coreógrafos
musicais de uma geração, que trata de um tipo específico de musicalidade, aquela
que estabelece com clareza uma bateria de instrumentos com os quais se pré-estipularam
os modos de diálogo entre composição coreográfica e partitura, atributos que
as vezes chegam a ser de uma afinação cristalina. Em "Purcell Pieces" Christe
não apenas diagrama uma pauta musical, ele modela unidades dramático-musicais
e resolve com uma gramática simples, mas bem combinada, as situações cênicas
que propõe. A cena inicial da obra é sem dúvida a melhor lograda coreograficamente,
na sua função de introdução. Propõe o jogo e comunica as regras do mesmo, com
simplicidade e clareza. A obra decorre cômoda, em seus quase quarenta minutos
de duração; orgânica, com momentos de natural declínio da atenção e outros de
lograda exaltação, culminando previsível mas docemente. "Purcell Pieces" é uma
obra terna, em ambos sentidos da palavra. Os bailarinos do Ballet Contemporâneo
defenderam bem a coreografia, e se ainda precisam de alguns ajustes no coach,
se vêem coesos e dançantes. Mariela Alarcón teve instantes de luz em seu pequeno
solo e dançou com fluidez o belo trabalho de braços. Francisco Lorenzo demonstrou
não somente ser o melhor intérprete homem da companhia como também um dos bailarinos
mais promissores da Argentina. Ele cumpre uma função específica no grupo masculino
da companhia, a mesma que cumpriu Miguel Angel Elías por tantos anos, ser um
"captain dancer" natural, uma pilha que energiza seu grupo. O Ballet Contemporâneo
agora deve prestar mais atenção a sua forma física, há obras que precisam indispensavelmente
de corpos afinados e há elementos em ambos naipes que estão definitivamente
fora de peso. O programa foi completado com duas obras de jovens coreógrafos
argentinos. "Apenas" de Mariana Estévez é uma pequena obra mais do que interessante.
Um estudo coerente e nada concessivo que vem oxigenar as vertentes estéticas
da companhia. Com uma música deliciosa de Daniel Melero e impecável edição de
som de Claudio Céccoli, a coreógrafa transitou dois planos de atenção alternativamente
com excelente resultado na fragmentação da narrativa. Corpos femininos sem rosto,
abaixo e um plano vazio (baixando), acima. O plano superior termina invadindo
o inferior e finalmente o penetra. É verdade que o final da peça se vem fazendo
evidente desde muito antes de acontecer (o papel do painel pré-rasgado não ajudou)
e talvez o final seria um excelente inicio da obra, eliminando resquícios binários
ao relato cênico. Mas de qualquer maneira se trata de uma obra honesta, fiel
a si mesma e oportuna. "Vals en Vilo" de Carlos Trunsky é uma obra de ambiente,
e tem na manipulação dos climas cênicos um de seus maiores atributos. Trunsky
transita pelas veias de uma rede afetiva com sensibilidade e gosto, precisando
apenas aprofundar para encontrar sua identidade dramática. Se a matéria prima
da linguajem coreográfica de Trunsky não é original, a disposição do material
revela um coreógrafo hábil, que não satura fórmulas e disposto a investigar.
"Vals en Vilo" propõe um itinerário, e mesmo se extraviando ocasionalmente,
consegue desenhar a ação com bem pontuada trama coreográfica, muito atenta aos
andamentos do violino de Gideon Kremer no áudio. As saídas e entradas rasantes
por debaixo dos painéis laterais da ambientação, resultaram muito bem, mas não
a saída em silêncio pelas escadas de serviço do teatro, que se viu forçado,
gratuito e mal resolvido. Outro problema cênico foi o nu final; excessivamente
coibido. O personagem pode ter vergonha, o bailarino não. Não pode começar a
cobrir-se antes de significar nu. A ação dramática tem suas leis, que mesmo
que as desconheçamos, se cumprem. Cabe chamar a atenção à duração dos intervalos
(quase ½ hora); inapropriados para a natureza do espetáculo. E também à ordem
do programa que abrindo com "Purcell" e encerrando com "Vals...", deixando no
meio "Apenas"; houvera ganhado em efetividade e eloqüência. Nem sempre a obra
mais grupal é a que deve encerrar um programa. A ordem numérica é óbvia, a ordem
artística é o desafio. MÉXICO O nono Encontro Binacional de Dança de Mexicali,
na fronteira com USA, teve este ano uma programação bem heterogênea, que equilibrou
o peso artístico durante as onze apresentações do evento, na qual se pode constatar
a importante etapa que está vivendo a Dança Contemporânea mexicana. "Contempodanza"
dirigido por Cecilia Lugo apresentou seu digníssimo Espejo de Linces; "Delfos"
trouxe sua Consagración de la Primavera, que ainda lhe fica grande. A companhia
local Paralelo 32 apresentou um programa misto contando como bailarino convidado
o brasileiro Rosito di Carmine. "Quiatora Monorriel" apresentou um tedioso trabalho
de noite inteira e o solista venezuelano Luis Viana fez uma releitura sui generis
do mito de Edipo em Gelatina Vil. Dois trabalhos merecem especial atenção: o
solo do mexicano Antonio Salinas e a naive mas sincera proposta de "Da te Danza"
de Granada. UMA GULODICE COREOGRÁFICA Antonio Salinas é um "performer" no sentido
mais completo do conceito. Sua dança acontece com a simplicidade e a inevitabilidade
do "aqui" e do "agora" e nisto reside sua poética, misto de dança pós-moderna
e mimo de rua. Uma química oportuna. "Las casualidades de Benjamín" é uma narrativa
linear, um dia na vida de um entregador de jornais, permitindo-se toda a obviedade
do universo cotidiano e fazendo da descrição direta uma estratégia de aproximação
que se revela eficiente e profundamente teatral. É através deste roteiro de
ações físicas (acordar, tomar banho, andar de bicicleta, etc...) que Salinas
constrói o caráter de sua personagem e cativa o público com espontânea ternura.
Um humor fresco, nada forçado, conseqüência das próprias ações, se desprende
deste trabalho, originalmente concebido para platéia infanto-juvenil mas apto
para todo público sensível. Antonio Salinas é um bailarino dotado, com grandes
condições físicas que lhe permitem executar com fluidez a dançadíssima coreografia
de sua obra, passando sempre uma sensação de comodidade e conforto. Não há desfile
de passos, estes apenas fazem parte de uma narrativa coerente e bem encaminhada,
a dança brota da ação e se projeta na medida justa, sem excessos, sem exibicionismos,
sem pirotecnia gratuita; apenas conduzindo e condimentando o relato. "Las casualidades
de Benjamín" tem como mérito adicional os utilitários, todos os elementos de
cena feitos de papel de jornal (lençóis, regador, mochila, etc.) são de uma
eloqüente simplicidade e funcionam dramática e visualmente. É reconfortante
ver um resultado final tão logrado com tão pouco; e é porque a funcionalidade
está colocada prioritariamente em tudo; objetos, trilha sonora, coreografia.
Não há uma busca exaustiva do rendimento formal da peça, os resultados formais
se desprendem naturalmente do tratamento que Salinas dá a sua miniatura anedótica.
Nada é casual nestas "Casualidades" e é por isso que Salinas é Benjamín antes
que bailarino neste simpático relato coreográfico que vale a pena assistir.
ESPANHA NO MÉXICO A dança contemporânea espanhola teve muitos anos de letargia
estética sob as asas do ditador Franco. Quando na França e no Benelux a pós-modernidade
mostrava suas unhas, Espanha ainda lutava com um ballet clássico medíocre e
uma dança moderna de precariedade gritante. Os tempos mudaram e com a redemocratização
ibérica veio a aceleração dos processos culturais até então sufocados, foram
os tempos do "destape". Muitos artistas espanhóis que viviam no exterior voltaram
a sua pátria e ajudaram a refrescar e revitalizar as artes. Nos anos 90 Madri,
Barcelona e Valência foram três cidades de singular importância na arte coreográfica.
Em Madri Víctor Ullate liderou o movimento do novo ballet acadêmico e sua ex-esposa
e companheira nas filas do Ballet do Século XX de Maurice Béjart, Carmen Roche
se consolida como a Maître mais reputada. O grupo 10&10 e o grupo Mal Pelo passam
a vanguarda da pós-modernidade e o superstar Nacho Duato volta da Holanda onde
era bailarino fetiche de Jiri Kylian e assume a direção da Companhia Nacional
de Dança com a qual estrearia obras importantíssimas como "Jardín Trancat",
"Pos vos Muero" e mais recentemente "Romeu e Julieta", "Remanso" (originalmente
criada para o American Ballet Theatre) e Bach. Neste período Duato convida também
coreógrafos de primeira linha como William Forsyte, Ohad Naharin, Olga Roriz,
Itzik Galili e o próprio Kylian, dando oportunidade ao público espanhol de ter
contato com o mais novidoso da dança e o ballet contemporâneo. Em Barcelona
os grupos independentes se multiplicam cobrando especial projeção Danat Danza,
La Anónima Imperial e Metro de Ramón Oller. Em Valência Anandadanza inicia uma
importante trajetória e o festival "Dansa Valencia" se transforma em uma vitrine
da nova dança espanhola aonde programadores de teatros e festivais vão anualmente
fazer contato com o mais destacado de sua vanguarda. Nesse contexto de rápida
evolução dezenas de cidades em todo o país começam a ter movimento próprio,
nascem (e morrem) centenas de grupos independentes que sonham com um lugar no
complexo mercado da dança contemporânea européia. "Da Te Danza" faz parte desse
movimento: é um grupo pequeno e jovem liderado pelo mexicano Omar Meza, que
aparece em Granada em 1999 com o espetáculo infantil juvenil "Un Caballo en
el Cielo" e estreia no ano seguinte "La mitad de la verdad esta en los ojos"
que aqui apresentaram. "La mitad...." é uma obra que reúne varias inquietudes
coreográficas de Meza e poderia ser dividida em duas ou mais peças. Todo o bloco
inicial, onde os bailarinos contracenam com quatro espelhos de tamanhos diferentes
é a parte mais interessante da obra, onde se reúnem os elementos formais mas
ricos e onde reside a maior parte de seu mérito. A busca de diversos espaços
delineados pelos painéis espelhados como a relação dos bailarinos com cada nova
formação dos espelhos é rica e sugestiva e os quatro solos que surgem e culminam
nos painéis, mesmo que extensos, têm pontos de interesse. Os momentos mais inspirados
são o solo feminino contra o espelho inclinado e o solo do próprio Omar que
culmina escapando-se por debaixo dos painéis. Já a segunda metade da obra começa
débil com um quarteto sem muito interesse no âmbito da linguagem, a cena do
duo com o tecido pouco explorada e o interessante duelo de Omar Meza com José
Agudo (o melhor da segunda parte) parece originar-se do nada, dando incompreensível
descontinuidade ao discurso dramático. O final com a aparição das folhas verdes
precisa mais elaboração para ganhar eloqüência. La mitad de la verdad... precisa
cortar a metade dos recursos empregados para ganhar coesão e força vital; a
obra se vê sufocada pela quantidade de elementos que afogam seu potencial; e
como a maioria das obras que assistimos de grupos de câmara de dança contemporânea
requer uma boa edição para adquirir o tamanho proporcional à capacidade de seu
dizer. Nada disto invalida que se trata de um grupo com possibilidades e de
notória seriedade no trabalho, dirigido por um bailarino sensível, honesto,
direto e que apesar de suas vacilações com referência a linguajem a que se refere,
tem coisas para dizer.
Valerio Cesio é crítico e coreógrafo
Jornal Dança, Arte & Ação
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