Jornal DAA - Critica - 48
Crítica
- Ballet
Kirov - uma missão
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- O que falar
diante da qualidade apresentada pelo Ballet Kirov? Assistir ao maior dramaturgo
da dança acadêmico-contemporânea do século XX, Kenneth MacMillan, interpretado
por uma companhia que nos faz sair do teatro com a certeza de que não deixará
jamais morrer o ballet clássico, é justificar toda uma vida, uma opção existencial
nem sempre fácil de ser vivida. Ballet é como música erudita: nunca morrerá.
Porque 'é a mais bela criação do ser humano em toda a sua existência' segundo
palavras de D. Eugênia Feodorova. A grande mestra vai se entusiasmando.
Pelo telefone parece que vemos seus olhos brilharem. Ela vai mais longe,
exprime o que sentimos e o faz na nossa língua com a poesia que nós mesmos
nem sempre logramos transmitir. 'Ballet é a fronteira do mais maravilhoso
que o ser humano pôde e pode construir. É algo precioso, é beleza no seu
sentido absoluto e, como tal, é sinônimo de verdade, a verdade possível,
palpável porque realizada com o próprio corpo. É divino e ao mesmo tempo
é humano; é profundamente artesanal: da técnica secular aos elementos cênicos.
Uma vez, Eliana' - ela me disse - 'vendo Ulanova (Galina Ulanova) dançar,
um senhor, leigo sabe?', ela comenta, 'confessou que vendo-a esquecia-se
de sua própria profissão. Você pode dimensionar, querida, o que significa
isso?' Como todos nós, ela teme que eles precisem colocar esta maravilha
à venda para sobreviver num mundo que está assassinando o espírito, um mundo
árido que nega a emoção. Mas creio, firmemente, e esta é uma impressão pessoal,
que isto jamais acontecerá de forma demolidora na Rússia. O temperamento
artístico e poético daquele povo não conseguirá sobreviver sem alimento
espiritual. Quem teve o privilégio de assistir a esta temporada, de ver
abismado em 'Manon', o nobre e longilíneo Igor Zelenski se transformar no
amoral e fraco 'Des Grieux' ao lado da frívola e inconseqüente Manon vivida
por Irma Nioradze, ambos extraordinários intérpretes e figuras maravilhosas
que se completam magnificamente, ambos perfeitamente integrados na técnica
contida, sem explosão, no gestual hesitante, cheio de tallonés e movimentos
indecisos desse incrível Mac Millan, tem certeza disso. Natalya Sologub
na 'amante de Lescaut' foi beleza pura. Mas assim como ao Lescaut de Maxim
Khrebtov faltou uma dose a mais do cinismo, da vilania que os ingleses são
mestres em transmitir sutilmente, faltou à bailarina um toque de vulgaridade.
Por momentos ela lembrava a própria 'Manon'. Detalhes de adaptação a outros
criadores, a representantes de uma arte mais sofisticada (não estou dizendo
refinada; que bailarinos são mais refinados que os do Kirov? O que eles
ainda não atingiram é a dissimulação típica do ocidente; porque dançam de
peito aberto, jogam claro e sem reservas) e pernóstica que estarão dominando
em pouco tempo. A música de Jules Massenet, cenários, figurinos e iluminação
completaram um dos mais bonitos espetáculos já vistos no Theatro Municipal
do Rio. 'O Corsário' foi outra noite inesquecível. Pela beleza e juventude
de Svetlana Zakharova, beleza que compreende interpretação, presença, figura,
escola perfeita, pela exuberância de Ilya Kusnetsov em Conrad e de Andrian
Fadeev em Lankedem, pelo abuso de apresentar Farouk Rusimatov numa composição
insuperável, felina, requintada do 'Escravo'. Zakharova, uma garça; Zelenski,
um cavalo pura raça; Rusimatov um animal da selva, idealizações de corpos
concretos, reais, não virtuais. Entre tantos bailarinos que atuam com força
vital, é um sonho o corpo de baile no 'Jardim Animado' desse Marius Petipa
de extraordinária imaginação criadora, que vara os tempos encantando crianças
e adultos que ainda sejam capazes de sonhar. Quando assisto ao Kirov lembro-me
do Gonzaguinha de 'Começaria tudo outra vez...'. Tenho a ousadia de misturar
todos os sentimentos que tomam conta, nesse momento, do meu coração de bailarina
apaixonada que nunca deixou e nunca deixará de ser. PS: Quanto à 'Noite
de Estrelas', mais uma gala arranjada, foi, no mínimo, nada ética. Porque
ao cobrar o mesmo preço por um espetáculo encenado com fita, com o palco
nu e todo picotado afugenta-se o público que só comprou ingressos para aquela
noite, porque gera comentários contra a decantada qualidade da companhia.
'Espectro da Rosa' sem cenário? Com efeito! É melhor esquecer.
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Eliana
Caminada é professora de História da Dança na UniverCidade e
Universidade Castelo Branco e foi primeira bailarina do Theatro Municipal
- RJ
Página pessoal: http://www.geocities.com/caminadabr/index.html
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